FURAR FILA, ziguezaguear no trânsito, IGNORAR os pequenos gestos que tornam mais humano o cotidiano, o bom dia, o obrigado, o por favor, O COM LICENÇA. Individualista e competitiva, a SOCIEDADE MODERNA molda o comportamento e faz com que boa parte das pessoas perca o senso de coletividade, em um cenário onde a principal máxima é o...
Manhã de quarta-feira na fila única do caixa na loja de materiais de construção Leroy Merlin, em Campinas. Um homem aguarda a vez de pagar suas compras no primeiro lugar, enquanto dois outros clientes chegam e também passam a esperar, logo atrás, pela sua vez. Quando a luz indicativa se acende chamando o próximo para o caixa 5, as duas pessoas que estavam atrás se antecipam e, sem qualquer consulta prévia, driblam quem esperava havia mais tempo e chegam primeiro ao caixa.
A história, real, testemunhada duas semanas atrás, expõe uma faceta nada agradável e cada vez mais comum nas relações sociais nas ruas de Campinas e de todo o Brasil. Muito preocupadas consigo mesmas, devido ao alto grau de competitividade vivido em todos os aspectos da vida moderna, as pessoas acabam ignorando preceitos básicos que norteiam e regulam a vida em comunidade. Respeito ao próximo, educação, gentileza, códigos de ética e até normas de segurança e leis formais são deixados em segundo plano.
Em tempos onde a chamada “lei de Gérson”, que ensina desde os anos 70 que levar vantagem em tudo, e sempre, é o melhor caminho, a sensação de ter que chegar antes, primeiro e melhor impera e acaba tratada com naturalidade. Tornou-se parte do cotidiano das pessoas, está enraizada na sociedade e ultrapassa limites de idade, tempo, nível social e formação profissional.
“O Interior de São Paulo está, infelizmente, perdendo sua característica de cultura caipira, que é altamente cerimoniosa, gentil. As pessoas estão deixando de dar bom dia a quem não conhecem e até a quem conhecem. O respeito mútuo e a ética nas relações estão se perdendo”, diz Roberto Romano, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Ele mesmo tem um exemplo para ilustrar o que fala. “Eu estava em Campinas, dirigindo meu carro, quando parei em um sinal vermelho. Atrás estava uma senhora em um belo carro elegante. Quando o sinal abriu, uma outra senhora, que não enxergava, estava atravessando a rua na faixa de pedestres quando a do carro chique começou a buzinar, desesperadamente, para eu andar depressa. Não tive dúvidas: desci do carro e fui questionar o comportamento. Ela disse simplesmente que não tinha visto. É típico da pessoa que não enxerga os outros. Só pensa nela, quer passar logo pelo sinal e seguir a sua vida, não importa como”, disse.
No cotovelo
Para ele, o comportamento é sinal de que a “lei de Gérson” ainda vigora. “É um modo típico de conseguir as coisas usando o cotovelo para abrir espaços. É a chamada ‘lei de Gérson’, onde levar vantagem é sempre mais importante. Trata-se de um traço triste da nossa classe média, que foi inclusive a mola propulsora do golpe militar de 1964”, disse.
Para Romano, se a pessoa não sabe se colocar no lugar dos outros na hora de respeitar os códigos de ética, acaba se tornando insensível e inapta para viver em uma sociedade de forma saudável. “Isso é perigoso. Se a pessoa é capaz de lesar um semelhante com coisas pequenas, pode muito bem fazer coisa muito maiores.”
O cineasta, comentarista político e colunista do Correio Popular Arnaldo Jabor afirma que o problema tem origem cultural e na baixa efetividade da educação oferecida no País. “O perfil do brasileiro é de personalismo e individualismo. As pessoas acham que podem sujar as ruas, passar na frente dos outros, dirigir mais depressa que todo mundo. A ideia de coletividade é muito rala”, disse.
A pedagoga Graça Coutinho diz que já passou por inúmeras situações em que se deparou com falta de educação. Em uma delas, estava no estacionamento de um shopping, indo buscar o carro, quando, na hora de atravessar uma rua, um veículo quase a atropelou. “Eu ia parar e olhar a rua, mas a mulher se assustou e freou em cima. Ela começou a me xingar, foi muito grosseira, ficou nervosa e eu disse que a gente ia ter que resolver na polícia”, contou.
Para ela, as pessoas hoje só pensam nelas mesmas, só visam ao lucro que vão conseguir e estão cada vez mais sem educação. “A educação está se perdendo, temos que resgatar a solidariedade, as pessoas têm que criar teias de relações para pensar mais nos outros”, disse.
Fabiana Medeiros, manicure, estava entrando em um banco, sem a bolsa, apenas com um celular e uma chave. Na hora de entrar, a porta com o detector de metais travou e não parou de apitar. “Eu já tinha tirado o celular e a chave e dizia que não tinha mais nada, mas o segurança insistia que tinha e foi extremamente grosseiro, chegou a sugerir que eu tirasse a roupa. Foi muito constrangedor.” Fabiana também acredita que a falta de educação está em todos os lugares. “Ninguém pensa mais nos outros, na mágoa que pode causar para as pessoas. Está muito ruim viver em sociedade”, disse.
O advogado Octávio Augusto de Souza Azevedo conta uma história que não parece real. “Eu estava dirigindo na Avenida Norte-Sul na pista do meio. Um motorista que vinha pela pista da direita simplesmente jogou o carro para cima do meu, cortou a minha frente e foi para a pista da esquerda. Sem dar seta. Duzentos metros depois, ele fez a mesma coisa, mas no sentido inverso, para voltar para a pista da direita. Reclamei com ele quando os carros pararam no semáforo e o cara disse que nas duas vezes não tinha me visto. Ele nem sabia que tinha me fechado e quase causado um acidente.”
A cena é comum no trânsito. Segunda-feira, começo da noite. Um motorista dirige com calma pela Avenida Mackenzie, perto do Shopping Iguatemi. Pela pista da esquerda, ele passa alguns carros que trafegam mais lentos e observa, com atenção, os movimentos de um motorista que parece inseguro ao volante um pouco adiante. Prevendo problemas, ele reduz a velocidade antes de emparelhar. Em segundos, o motorista da direita entra, de uma vez, sem sinalizar, na pista da esquerda para fazer o retorno perto da saída do shopping. Aparentemente, ele sequer percebeu o que aconteceu. Por poucos centímetros, não houve um acidente.
Políticos
Para especialistas, o comportamento de nossos políticos não foge à regra e acaba fortalecendo a crise de falta de ética e educação verificada nos dias de hoje. Corrupção, uso indevido das máquinas públicas, atos em benefício próprio, baixo índice de fidelidade com partidos e ideologias, e falta de transparência em atos e contas públicas são alguns dos fatores apontados como preocupantes.
“Os políticos dão péssimos exemplos de falta de educação, de falta de ética, ao tratar com a coisa pública com pensamento voltado a eles mesmos. Isso interfere diretamente nas ações das pessoas e em suas relações em sociedade”, disse Jabor.
“A força bruta, a lei de conseguir as coisas usando o cotovelo funciona em todos os níveis da sociedade. Desde as classes menos favorecidas até as mais abastadas, passando pelos políticos. São péssimos exemplos”, afirmou Romano.
Antes de ser eleito pela primeira vez, em 2001, o presidente Lula era um crítico contumaz de programas que chamava de assistencialistas, como o Bolsa Família. Segundo ele, ações assim seriam “uma praga social”.
Naquela época, Lula era o principal nome da oposição. Hoje, do outro lado da trincheira, o presidente defende o Bolsa Família, um de seus propulsores eleitorais, e parece ter esquecido do que sentia, pensava e queria antes de ser presidente.
Assim, Lula adota a “lei de Gérson” em benefício próprio. Procura tirar vantagem pessoal da situação, independentemente daquilo que ache. Ou de como seja, de fato, a realidade abordada. E sem pensar nas pessoas e no elas vão achar. Afinal, nem todo mundo se importa.
“Tem gente que se acostumou a ser atendida com falta de atenção e até de educação em lugares como padarias e restaurantes. As pessoas acabam se acostumando com isso, o que mostra a gravidade do problema.”
Edgar Castro
Funcionário público
“O Brasil precisa de uma forte ação de educação, mas não só educar nas escolas. Precisamos pensar em educar as pessoas para melhorarmos as relações nas ruas.”
Octávio Augusto de Souza Azevedo
Advogado
“Nós temos uma grande massa de pessoas nas periferias sem escola, sem emprego, sem assistência. Mas o problema da falta de educação não está restrito a esse pessoal.”
Roberto Romano
Professor da Unicamp
‘A ideia de coletividade é muito rala’
Para o cineasta e cronista Arnaldo Jabor, o problema da falta de educação atinge toda a sociedade brasileira. “O perfil do brasileiro é de personalismo e individualismo. As pessoas acham que podem sujar as ruas, passar na frente dos outros, dirigir mais depressa que todo mundo. A ideia de coletividade é muito rala”, disse.
Para Jabor, a consciência do outro, do próximo, é muito rara no País. Não há uma identificação com o interesse público. “Educação e investimento econômico, juntos, podem ajudar a transformar essa realidade. Mas é um trabalho difícil”, afirmou. “No Brasil, há uma brutalidade e uma violência que são evidentes. Há também uma competição suja e desleal entre as pessoas que não se justifica e acaba gerando violência e mais desrespeito.”
Para ele, o contexto político não pode ser ignorado quando se fala de desrespeito e falta de ética. “Os péssimos exemplos que muitos de nossos políticos dão acabam influenciando as pessoas de forma negativa em toda a sociedade”. (GB/AAN)
‘Nossa classe média não tem senso de respeito aos outros’
“A classe média brasileira é uma das mais desqualificadas do mundo em termos de respeito e regras. Por ter um carro BMW, o sujeito acha que tem o direito de andar a 180 km/h na estrada. Por estar pagando o restaurante, a pessoa pensa que pode tratar com rispidez e grosseria o garçom, ou falar alto sem se incomodar com a possibilidade de atrapalhar outras pessoas.”
A opinião acima é do professor da Unicamp Roberto Romano. Para ele, os códigos de ética estabelecidos em uma sociedade são fundamentais para uma vivência estável dentro dela. Tão essenciais quanto as leis vigentes.
“Reverter isso é muito difícil. É preciso um conjunto de ações simultâneas. Em primeiro lugar, a educação e a propagação dos valores dos códigos de ética e boas maneiras. Além disso, é preciso reprimir os comportamentos indesejados e impedir que haja condescendência.” As pessoas que vivem nas grandes cidades, como Campinas, diz Romano, acham que agir com grosseria com um outro cidadão não acarretará problemas porque dificilmente as pessoas vão se encontrar novamente.
“Quando o sinal fica amarelo para alertar o motorista que ele deve parar, o brasileiro tende a acelerar para aproveitar o restinho de tempo que tem para passar antes de quem cruza o seu caminho. Ou seja, ele pisa fundo para levar vantagem.”
“Nossa classe média é moralista e hipócrita e não tem senso de respeito aos direitos dos outros.” (GB/AAN)
PONTO
DE VISTA
Maus e bons exemplos
Era para ser um final de semana como outro qualquer. Mas uma história de falta de respeito e educação quase colocou tudo a perder. No final de tarde de domingo, levei meu filho ao cinema em um dos shoppings de Campinas para ver Os Mosconautas. Após o filme, como de costume, fomos comer um lanche numa unidade de uma rede de fast-food bastante conhecida. Havia seis ou sete pessoas em cada uma das filas nos caixas em operação. Sem pressa, sem compromisso, resolvi encarar a demora para cumprir a promessa feita antes do filme. Me posicionei, então, em último lugar, à espera da minha vez, como normalmente se faz. Para dar agilidade ao atendimento, uma funcionária me abordou e anotou o pedido. Seria, depois, só entregar a ficha ao caixa, pagar e esperar pelos lanches. Foi então que algo desagradável aconteceu. Um casal entrou na minha frente na fila, sem qualquer consulta, e, já me dando as costas, chamou pela funcionária do pré-atendimento para fazer seu pedido. Perplexo, me sentindo desrespeitado, e ao mesmo tempo preocupado em não expor uma criança de 9 anos a uma situação de violência, decide questionar o comportamento e cutuquei, suavemente, as costas da moça. “Oi, nós estamos na fila”, disse, gentilmente, para a jovem mulher. A resposta da pessoa foi agressiva e intempestiva. Descontrolada, a garota, do alto de seus vinte e poucos anos, se sentiu ofendida e começou a berrar. “O quê? Você tá maluco? A gente está aqui faz um tempão. Fica na sua.” Precisei de muita calma para dar por encerrada a questão e não retrucar. Tinha, como pai, o exemplo a dar a meu filho. E, mais importante, ele esperava pela nossa vez para comprar lanches e batatas fritas.
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
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